Читаем Livro do Desassossego полностью

Mas o que fica de sentir tudo isto é com certeza um desgosto da vida e de todos os seus gestos, um cansaço antecipado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto anónimo de todos os sentimentos. Nestas horas de mágoa subtil, torna-se-nos impossível, até em sonho, ser amante, ser herói, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na ideia do que é. Tudo isso está dito em outra linguagem, para nós incompreensível, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. E tudo um caos de coisas nenhumas.

Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos inexpressivos. Pedras, corpos, ideias — está tudo morto. Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o estranhe mas porque não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo da minha alma — como única realidade deste momento — há uma mágoa intensa e invisível, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro.

197.

Sinto o tempo com uma dor enorme. É sempre com uma comoção exagerada que abandono qualquer coisa. O pobre quarto alugado onde passei uns meses, a mesa do hotel de província onde passei seis dias, a própria triste sala de espera da estação de caminho de ferro onde gastei duas horas à espera do comboio — sim, mas as coisas boas da vida, quando as abandono e penso, com toda a sensibilidade dos meus nervos, que nunca mais as verei e as terei, pelo menos naquele preciso e exato momento, doem-me metafisicamente. Abre-se-me um abismo na alma e um sopro frio da hora de Deus roça-me pela face lívida.

O tempo! O passado! Aí algo, uma voz, um canto, um perfume ocasional levanta na minha alma o pano de boca das minhas recordações... Aquilo que fui e nunca mais serei! Aquilo que tive e não tornarei a ter! Os mortos! Os mortos que me amaram na minha infância. Quando os evoco, toda a alma me esfria e eu sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite de mim próprio, chorando como um mendigo o silêncio fechado de todas as portas.

198.

Prosa de férias

A praia pequena, formando uma baía pequeníssima, excluída do mundo por dois promontórios em miniatura, era, naquelas férias de três dias, o meu retiro de mim mesmo. Descia-se para a praia por uma escada tosca, que começava, em cima, em escada de madeira, e a meio se tornava em recorte de degraus na rocha, com corrimão de ferro ferrugento. E, sempre que eu descia a escada velha, e sobretudo da pedra aos pés para baixo, saía da minha própria existência, encontrando-me.

Dizem os ocultistas, ou alguns deles, que há momentos supremos da alma em que ela recorda, com a emoção ou com parte da memória, um momento, ou um aspeto, ou uma sombra, de uma encarnação anterior. E então, como regressa a um tempo que está mais próximo que o seu presente da origem e do começo das coisas, sente, em certo modo, uma infância e uma libertação.

Dir-se-ia que, descendo aquela escada pouco usada agora, e entrando lentamente na praia pequena sempre deserta, eu empregava um processo mágico para me encontrar mais próximo da mónada possível que sou. Certos modos e feições da minha vida quotidiana — representados no meu ser constante por desejos, repugnâncias, preocupações — sumiam-se de mim como emboscados da ronda, apagavam-se nas sombras até se não perceber o que eram, e eu atingia um estado de distância íntima em que se me tornava difícil lembrar-me de ontem, ou conhecer como meu o ser que em mim está vivo todos os dias. As minhas emoções de constantemente, os meus hábitos regularmente irregulares, as minhas falas com outros, as minhas adaptações à constituição social do mundo — tudo isto me parecia coisas lidas algures, páginas inertes de uma biografia impressa, pormenores de um romance qualquer, naqueles capítulos intervalares que lemos pensando em outra coisa, e o fio da narrativa se esbambeia até cobrejar pelo chão.

Então, na praia rumorosa só das ondas próprias, ou do vento que passava alto, como um grande avião inexistente, entregava-me a uma nova espécie de sonhos — coisas informes e suaves, maravilhas da impressão profunda, sem imagens, sem emoções, limpas como o céu e as águas, e soando, como as volutas desrendando-se do mar alçante do fundo de uma grande verdade; tremulamente de um azul oblíquo ao longe, esverdeando na chegada com transparências de outros tons verde-sujos, e, depois de quebrar, chiando, os mil braços desfeitos, e os desalongar em areia amorenada  e espuma desbabada, congregando em si todas as ressacas, os regressos à liberdade da origem, as saudades divinas, as memórias, como esta que informemente me não doía, de um estado anterior, ou feliz por bom ou por outro, um corpo de saudade com alma de espuma, o repouso, a morte, o tudo ou nada que cerca como um grande mar a ilha de náufragos que é a vida.

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