Читаем Livro do Desassossego полностью

Somos quem não somos, e a vida é pronta e triste, O som das ondas à noite é um som da noite; e quantos o ouviram na própria alma, como a esperança constante que se desfaz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que lágrimas choraram os que obtiveram, que lágrimas perderam os que conseguiram! E tudo isto, no passeio à beira-mar, se me tornou o segredo da noite e da confidência do abismo. Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção! Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amámos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso noturno do meu passeio à beira-mar...

Quem sabe sequer o que pensa ou o que deseja? Quem sabe o que é para si-mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos e não foram nunca! Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda estoira e esfria e há um salivar audível pela praia invisível fora.

Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio, incorpóreo e humano, com o coração parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto, chasco, e esfria-se, no meu eterno passeio noturno à beira-mar!

96.

Vejo as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fito as reais. Se me debruço sobre os meus sonhos é sobre qualquer coisa que me debruço.

Se vejo a vida passar, sonho qualquer coisa.

De alguém disse que para ele as figuras dos sonhos tinham o mesmo relevo e recorte que as figuras da vida. Para mim, embora compreendesse que se me aplicasse frase semelhante, não a aceitaria. As figuras dos sonhos não são para mim iguais às da vida. São paralelas. Cada vida — a dos sonhos e a do mundo — tem uma realidade igual e própria, mas diferente. Como as coisas próximas e as coisas remotas. As figuras dos sonhos estão mais próximas de mim, mas...

97.

O verdadeiro sábio é aquele que assim se dispõe que os acontecimentos exteriores o alterem minimamente. Para isso precisa couraçar-se cercando-se de realidades mais próximas de si do que os factos, e através das quais os factos, alterados para de acordo com elas, lhe chegam.

98.

Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa. No fundo obscuro da minha alma, invisíveis, forças desconhecidas travavam uma batalha em que o meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate incógnito. Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum.

Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos. Tive receio de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito latente. O meu coração batia como se falasse.

Com passos largos e falsos, que em vão procurara tornar outros, percorri, descalço, o comprimento pequeno do quarto, e a diagonal vazia do quarto interior, que tem a porta ao canto para o corredor da casa. Com movimentos incoerentes e imprecisos, toquei nas escovas em cima da cómoda, desloquei uma cadeira, e uma vez bati com a mão movida em baloiço o ferro acre dos pés da cama inglesa. Acendi um cigarro, que fumei por subconsciência, e só quando vi que tinha caído cinza sobre a cabeceira da cama — como, se eu não me debruçara ali? — compreendi que estava possesso, ou coisa análoga, em ser quando não em nome, e que a consciência de mim, que eu deveria ter, se tinha intervalado com o abismo.

Recebi o anúncio da manhã, a pouca luz fria que dá um vago azul branco ao horizonte que se revela, como um beijo de gratidão das coisas. Porque essa luz, esse verdadeiro dia, libertava-me, libertava-me não sei de quê, dava-me o braço à velhice incógnita, fazia festas à infância postiça, amparava o repouso mendigo da minha sensibilidade transbordada.

Ah, que manhã é esta, que me desperta para a estupidez da vida, e para a grande ternura dela! Quase que choro, vendo esclarear-se diante de mim, debaixo de mim, a velha rua estreita, e quando os taipais da mercearia da esquina já se revelam castanho sujo na luz que se extravasa um pouco, o meu coração tem um alívio de conto de fadas reais, e começa a conhecer a segurança de se não sentir.

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