Ergo a cabeça de sobre o papel em que escrevo... E cedo ainda. Mal passa o meio-dia e é domingo. O mal da vida, a doença de ser consciente, entra com o meu próprio corpo e perturba-me. Não haver ilhas para os inconfortáveis, alamedas vetustas, inencontráveis de antes, para os isolados no sonhar! Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar pelo facto de haver outra gente, real também, na vida! Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser preciso à alma fazê-lo, e, mesmo isto, não poder sonhá-lo apenas, exprimi-Lo sem palavras, sem consciência mesmo, por uma construção de mim próprio em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expressar-me, e eu fluísse, como um rio encantado, por lentos declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante, sem sentido nenhum exceto Deus.
93.
Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência.
Avida das minhas emoções mudou-se, de origem, para as salas do pensamento, e ali vivi sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida.
E como o pensamento, quando alberga a emoção, se torna mais exigente que ela, o regime de consciência, em que passei a viver o que sentia, tornava-me mais quotidiana, mais epidérmica, mais titilante a maneira como sentia.
Criei-me eco e abismo, pensando. Multipliquei-me aprofundando-me. O mais pequeno episódio — uma alteração saindo da luz, a queda enrolada de uma folha seca, a pétala que se despega amarelecida, a voz do outro lado do muro ou os passos de quem a diz juntos aos de quem a deve escutar, o portão entreaberto da quinta velha, o pátio abrindo com um arco das casas aglomeradas ao luar — todas estas coisas, que me não pertencem, prendem-me a meditação sensível com laços de ressonância e de saudade. Em cada uma dessas sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada impressão indefinida. Vivo de impressões que me não pertencem, perdulário de renúncias, outro no modo como sou eu.
94.
Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir — é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão. Altos montes da cidade! Grandes arquiteturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações – sois hoje, sois eu, porque vos vejo, sois o que serei? Amanhã, e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem.
95.
Durei horas incógnitas, momentos sucessivos sem relação, no passeio em que fui, de noite, à beira sozinha do mar. Todos os pensamentos, que têm feito viver homens, todas as emoções, que os homens têm deixado de viver, passaram pela minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada à beira-mar.
Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e comigo passearam, à beira ouvida do mar, os desassossegos de todos os tempos. O que os homens quiseram e não fizeram, o que mataram-no, o que as almas foram e ninguém disse — de tudo isto se formou a alma sensível com que passeei de noite à beira-mar. E o que os amantes estranharam no outro amante, o que a mulher ocultou sempre ao marido de quem é, o que a mãe pensa do filho que não teve, o que teve forma só num sorriso ou numa oportunidade, num tempo que não foi esse ou numa emoção que falta — tudo isso, no meu passeio à beira-mar, foi comigo e voltou comigo, e as ondas estorciam magnamente o acompanhamento que me fazia dormi-lo.