Читаем Livro do Desassossego полностью

Há um sono da atenção voluntária, que não sei explicar, e que frequentemente me ataca, se de coisa tão esbatida se pode dizer que ataca alguém. Sigo por uma rua como quem está sentado, e a minha atenção, desperta a tudo, tem todavia a inércia de um repouso do corpo inteiro. Não seria capaz de me desviar conscientemente de um transeunte oposto. Não seria capaz de responder com palavras, ou sequer, dentro em mim, com pensamentos, a uma pergunta de qualquer casual que fizesse escala pela minha casualidade coincidente. Não seria capaz de ter um desejo, uma esperança, uma coisa qualquer que representasse um movimento, não já da vontade do meu ser completo, mas até, se assim posso dizer, da vontade parcial e própria de cada elemento em que sou decomponível. Não seria capaz de pensar, de sentir, de querer. E ando, sigo, vagueio. Nada nos meus movimentos (reparo por o que os outros não reparam) transfere para o observável o estado de estagnação em que vou. E este estado de falta de alma, que seria cómodo, porque certo, num deitado ou num recumbente, é singularmente incómodo, doloroso até, num homem que vai andando pela rua.

É a sensação de uma ebriedade de inércia, de uma bebedeira sem alegria, nem nela, nem na origem. É uma doença que não tem sonho de convalescer.

É uma morte alacre.

45.

Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das ideias, lendo, sonhando, e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para estar sempre à beira do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar nele. Viver essa vida longe das emoções e dos pensamentos, só no pensamento das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra, aquela fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida. Ser no volteio dos mundos como uma poeira de flores, que um vento incógnito ergue pelo ar da tarde, e o torpor do anoitecer deixa baixar no lugar de acaso, indistinta entre coisas maiores. Ser isto com um conhecimento seguro, nem alegre nem triste, reconhecido ao sol do seu brilho e às estrelas do seu afastamento. Não ser mais, não ter mais, não querer mais... A música do faminto, a canção do cego, a relíquia do viandante incógnito, as passadas no deserto do camelo vazio sem destino...

46.

Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade...

"Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura."

Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida.

Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.

"Sou do tamanho do que vejo!" Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. "Sou do tamanho do que vejo!" Que grande posse mental Vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se refletem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objetiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando.

"Sou do tamanho do que vejo!" E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade largal aos grandes espaços da matéria vazia.

Mas recolho-me e abrando. "Sou do tamanho do que vejo!" E a frase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer.

47.

No desalinho triste das minhas emoções confusas...

Uma tristeza de crepúsculo, feita de cansaços e de renúncias falsas, um tédio de sentir qualquer coisa, uma dor como de um soluço parado ou de uma verdade obtida. Desenrola-se-me na alma desatenta esta paisagem de abdicações — áleas de gestos abandonados, canteiros altos de sonhos nem sequer bem sonhados, inconsequências, como muros de buxo dividindo caminhos vazios, suposições, como velhos tanques sem repuxo vivo, tudo se emaranha e se visualiza pobre no desalinho triste das minhas sensações confusas.

48.

Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de Leonardo da Vinci de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.

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