Читаем Livro do Desassossego полностью

Cessa a chuva, e dela fica, um momento, uma poalha de diamantes mínimos, como se, no alto, qualquer coisa como uma grande toalha se sacudisse azulmente dessas migalhinhas. Sente-se que parte do céu está já aberta. Vê-se, através da janela em frente, o calendário mais nitidamente. Tem uma cara de mulher, e o resto é fácil porque o reconheço, e a pasta dentífrica é a mais conhecida de todas.

Mas em que pensava eu antes de me perder a ver? Não sei. Vontade? Esforço? Vida? Com um grande avanço de luz sente-se que o céu é já quase todo azul. Mas não há sossego — ah, nem o haverá nunca! — no fundo do meu coração, poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância fechada a pó no sótão da casa alheia. Não há sossego — e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter...

42.

Não compreendo senão como uma espécie de falta de asseio esta inerte permanência em que jazo da minha mesma e igual vida, ficada como pó ou porcaria na superfície de nunca mudar.

Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa — não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.

Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento.

Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento, pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atração da própria impotência.

São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.

Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim passeio o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo. Nem me salva da monotonia senão estes breves comentários que faço a propósito dela.

Contento-me com a minha cela ter vidraças por dentro das grades, e escrevo nos vidros, no pó do necessário, o meu nome em letras grandes, assinatura quotidiana da minha escritura com a morte.

Com a morte? Não, nem com a morte. Quem vive como eu não morre: acaba, murcha, desvegeta-se. O lugar onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde andava fica sem ele lá ser visto, a casa onde morava é habitada por não-ele. É tudo, e chamamos-lhe o nada; mas nem essa tragédia da negação podemos representar com aplauso, pois nem ao certo sabemos se é nada, vegetais da verdade como da vida, pó que tanto está por dentro como por fora das vidraças, netos do Destino e enteados de Deus, que casou com a Noite Eterna quando ela enviuvou do Caos que nos procriou.

Partir da Rua dos Douradores para o Impossível... Erguer-me da carteira para o Ignoto... Mas isto intersecionado com a Razão — o Grande Livro que diz que fomos.

43.

Há um cansaço da inteligência abstrata, e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento pela emoção. É um peso da consciência do mundo, um não poder respirar com a alma.

Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as ideias em que temos sentido a vida, todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastam tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por detrás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado.

O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos — a da encarnação disforme do não-ser. Outras vezes está atrás de nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundíssimo de a desconhecermos.

Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. E uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado na cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo?

E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satã, de que um dia — um dia sem tempo nem substância — se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou  do não-ser.

44.

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