Dado os factos que venho explicando, compre-ende-se que eu fosse avaro de o interrogar sobre o Jap~ao. Para qu^a? Ele era capaz de atirar para dentro da minha ignor'ancia uma quantidade de coisas falsas. Quem sabe se ele se atrever'ia a insinuar pela conversa fora, como coisa normalmente acredit'avel, que no Jap~ao h'a problemas econ'omicos, dificuldades de vida para v'arias pessoas, cidades com lojas reais, campos com colheitas como as nossas, ex'ercitos realmente parecidos com os da Europa e com execr'aveis aperfeicoamentos cient'ificos para guerras em verdade contempor'aneas? Daqui ele n~ao hesitar'ia talvez em me afirmar — com que cinismo nem eu mego — que no Jap~ao os homens t^em relac'oes sexuais com as mulheres, que nascem crianzas, que a gente de l'a, em vez de estar sempre vestida como as figuras da louca japonesa, despe-se e veste-se como se fosse europeia. Por isso n~ao trat'amos do Jap~ao. Perguntei ao professor se ele tinha tido uma boa viagem, e ele caiu em dizer-me que n~ao — como se um estudioso como eu da porcelana nip'onica pudesse admitir que h'a m'as viagens para os japoneses, que — delicioso povo! — nem sequer se d'a ao trabalho de existir. As ch'avenas partem-se, n~ao comportam tormentas. A frase «uma tempestade num copo de 'agua» ou «numa ch'avena», como dizem outros, 'e puramente europeia.
Uma frase houve (casual, quero crer, no professor Boro) que me magoou mais do que outra.
Fal'avamos — eu, 'e claro, com o desprendimento com que se tratam estes assuntos fe'ericos — da influ^encia dos mecanismos sobre a psicolog'ia do oper'ario, quando se sabe — claro est'a — que o oper'ario n~ao tem psicolog'ia. E o professor referiu-se aos progressos industri'ais do Jap~ao e acrescentou urnas palavras, que me esforcei com metade de ^exito para n~ao ouvir, sobre (creio) movimentos oper'arios no Jap~ao e um fuzilamento (suponho) de n~ao sei que chefe socialista. Eu h'a tempos — numa coluna sem d'uvida humor'istica de um di'ario — vira em um telegrama de T'oquio constando qualquer coisa nesse tom; mas, al'em de n~ao crer que de T'oquio se mandassem telegramas — visto T'oquio n~ao dever ter mais do que duas dimens~aes —, ningu'em que como eu tenha estudado a psicolog'ia japonesa atrav'es das ch'avenas e dos pires, admite progressos de qualquer esp'ecie no Jap~ao, ind'ustrias japonesas, movimentos socialistas e chefes socialistas, ainda por cima fuzilados, como quaisquer europeus que vivem. Quem como eu conhece bem o Jap~ao — o verdadeiro Jap~ao, de porcelana e erros de desenho —, compreende bem a incompati-bilidade entre o progresso, ind'ustria e socialismo, e a absoluta n~ao-exist^encia daquele pa'is. Socialistas japoneses! Uma contradic~ao flagrante! Uma frase sem sentido, como «c'irculo quadrado»! Se nem o inexistente estivesse livre do socialismo! Aquelas figuras deliciosas, eternamente sentadas ao p'e de casas do tamanho d'elas, `a beira de lagos absurdos, de um azul imposs'ivel, aqu'em de montanhas totalmente irreais — essas maravilhosas figuras, com uma perfeita e patri'otica individualidade japonesa, n~ao pertencem decerto ao horroroso mundo onde se progride, e onde sobre o artista desabam a morbidez do produtivo e a barb'arie do humanit'ario.
E vem querer tirar-me estas convicc~oes o professor Boro, da Universidade de T'oquio! N~ao mas tira. N~ao 'e para ser enganado pela primeira realidade que se me atira aos olhos que eu tenho gasto minutos distensos na contemplac~ao cient'ifica e est'eril de bules e ch'avenas japonesas. O mais prov'avel, a respeito deste Boro, 'e que nascesse em Lisboa e se chame Jos'e. Do Jap~ao, ele? Nunca.
Se ao menos achei japonesa a sua cara? Absolutamente nada. Basta dizer que era real e existiu ali diante de mim, duas dolorosas horas, em plena ocupaco inest'etica de todas as dimens~oes aproveit'aveis (felizmente s'o tr^es) do espaco aut^entico. A sua cara parecia-se, 'e certo, com certas fotografias de «japoneses» que as ilustrac~oes trouxeram h'a anos, e de vez em quando reincidindo trazem; mas toda a gente que sabe o que 'e o Jap~ao ppor nunca l'a ter ido sabe de cor que aquilo n~ao s~ao japoneses. E, de mais a mais, essas ilustrac~oes eram principalmente de gener'ais, almirantes, e operac~oes guerreiras. Ora 'e absolutamente imposs'ivel que no Jap~ao haja gener'ais, almirantes e guerra. Como, de resto, fotografar o Jap~ao e os japoneses? A primeira coisa real que h'a no Jap~ao 'e o facto de ele estar sempre longe de n'os, estejamos n'os onde estivermos. N~ao se pode l'a ir, nem eles podem vir at'e n'os. Concedo, se me forgarem a isso, que existam um T'oquio e um Iocoama. Mas isso n~ao 'e no Jap~ao, 'e apenas no Extremo Oriente.