– Ele não podia ter esperado matar sir Henry de susto como havia feito com o velho tio, com o seu cão diabólico.
– O animal era selvagem e estava esfomeado. Se a sua aparência não matasse sua vítima de susto, pelo menos paralisaria a resistência que ela pudesse oferecer.
– Sem dúvida. Resta apenas uma dificuldade. Se Stapleton herdasse, como ele poderia explicar o fato de que ele, o herdeiro, estivesse vivendo escondido, com outro nome, tão perto da propriedade? Como ele poderia reivindicá-la sem despertar suspeitas e dúvidas?
– Essa é uma grande dificuldade, e receio que você esteja pedindo demais quando espera que eu resolva isso. O passado e o presente estão dentro do campo da minha investigação, mas o que um homem pode fazer no futuro é uma pergunta difícil de responder. A sra. Stapleton ouviu o marido discutir o problema em várias ocasiões. Havia três condutas possíveis. Ele podia reivindicar a propriedade da América do Sul, estabelecer sua identidade diante das autoridades inglesas lá, e assim obter a fortuna sem jamais vir à Inglaterra; ou podia adotar um disfarce sofisticado durante o curto período em que precisasse estar em Londres; ou, novamente, poderia fornecer as provas e documentos a um cúmplice, apresentando-o como herdeiro, e conservando o direito a uma parcela da renda dele. Não podemos duvidar, pelo que sabemos dele, que ele teria encontrado algum meio de sair da dificuldade. E agora, meu caro Watson, tivemos algumas semanas de trabalho duro, e por uma noite, eu acho, devemos pensar em coisas mais agradáveis. Tenho um camarote para “Les Huguenots”. Você já ouviu o De Reszkes? Posso pedir-lhe então para estar pronto em meia hora, e vamos parar no Marcini para um jantar no caminho?
*
FIM
O Vale do Medo
a tragédia de birlstone
O Aviso
– Penso que... – eu disse.
– Eu deveria fazer isso – Sherlock Holmes comentou com impaciência.
Acho que sou um dos mais pacientes mortais, mas admito que fiquei aborrecido com aquela interrupção sarcástica.
– Na verdade, Holmes – eu disse, sério – às vezes você é um pouco irritante.
Ele estava absorto demais em seus pensamentos para dar uma resposta imediata à minha queixa. Curvou-se sobre a mesa, sem ter tocado em nada do que lhe fora servido no café-da-manhã, e olhou para a tira de papel que acabara de tirar de um envelope. Depois pegou o envelope, colocou-o perto da luz e examinou cuidadosamente tanto a parte externa quanto a sua dobra.
– É a letra de Porlock – disse de modo pensativo. – Tenho quase certeza de que
é a letra de Porlock, embora só a tenha visto duas vezes. O E grego, floreado em cima, é característico. Mas se é de Porlock, deve ser algo muito importante.
Ele estava falando consigo mesmo, e não comigo, mas a minha irritação desapareceu, substituída pelo interesse que aquelas palavras me despertavam.
– Mas quem, afinal, é Porlock? – perguntei.
– Porlock, Watson, é um nome de plume, uma simples identificação, mas por trás disso existe uma personalidade matreira e evasiva. Numa carta anterior ele me disse abertamente que este não era seu nome e me desafiou, afirmando que eu jamais o encontraria entre os milhões de habitantes desta cidade grande. Porlock é importante não por ele mesmo, mas pelo homem poderoso ao qual está ligado. Imagine o peixe-guia com o tubarão, o chacal com o leão – qualquer coisa que seja é insignificante ao lado do que é ameaçador. Não apenas ameaçador, Watson, mas sinistro – e sinistro no mais alto grau. É nesse aspecto que ele me interessa. Você já me ouviu falar do professor Moriarty?
– O famoso criminoso, tão famoso entre os bandidos quanto...
– Modere-se, Watson – Holmes disse num tom de desaprovação.
– Eu ia dizer “quanto desconhecido do público”.
– Assim é mais distinto! – Holmes exclamou. – Você está revelando um certo tipo inesperado de humor baixo contra o qual preciso me proteger, Watson. Ao chamar Moriarty de criminoso, você está dizendo uma calúnia aos olhos da lei – e nisso reside a glória e a maravilha da questão. O maior planejador de todos os tempos, o organizador de todas as crueldades, o cérebro que controla o submundo: o cérebro que poderia ter feito ou destruído o destino de nações. Este é o homem. Mas ele está tão distante da suspeita de todos, tão imune a julgamentos, tão admirável em sua conduta e na sua capacidade de passar despercebido que por estas palavras de acusação que você disse ele poderia arrastá-lo aos tribunais e ganhar uma indenização por danos morais. Não é ele o celebrado autor de A dinâmica de um asteróide, um livro que trata de matemática pura num nível tão elevado que, segundo dizem, não havia ninguém na imprensa científica capaz de criticá-lo? Um homem desses é para se difamar? Um doutor desbocado e um professor difamado – esses seriam os papéis de vocês dois. Genial, Watson. Mas se eu for indulgente com os menos favorecidos, encontrarei meu lugar no céu.