Outrora gozava tudo isto, por isso é só agora, talvez, que compreendo quanto o gozava. Entrava para a missa como para um grande mistério, e saía da missa como para uma clareira. E assim é que verdadeiramente era, e ainda verdadeiramente é. Só o ser que não crê e é adulto, com alma que recorda e chora, são a ficção e o transtorno, o desalinho e a lajem fria.
Sim, o que eu sou fora insuportável, se eu não pudesse lembrar-me do que fui. E esta multidão alheia que continua ainda a sair da missa, e o princípio da multidão possível que começa a chegar para entrar para a outra — tudo isto são como barcos que passam por mim, rio lento, sob as janelas abertas do meu lar erguido sobre a margem.
Memórias, domingos, missas, prazer de haver sido, milagre do tempo que ficou por ter passado, e não esquece nunca porque foi meu... Diagonal absurda das sensações normais, som súbito de carruagem de praça que soa rodas no fundo dos silêncios ruidosos dos automóveis, e de qualquer modo, por um paradoxo maternal do tempo, subsiste hoje, aqui mesmo, entre o que sou e o que perdi, no antero olhar de mim que sou eu...
145.
Quanto mais alto o homem, de mais coisas tem que se privar. No píncaro não há lugar senão para o homem só. Quanto mais perfeito, mais completo; e quanto mais completo, menos outrem.
Estas considerações vieram ter comigo depois de ler num jornal a notícia da grande vida múltipla de um homem célebre. Era um milionário americano, e tinha sido tudo. Tivera quanto ambicionara — dinheiro, amores, afetos, dedicações, viagens, coleções. Não é que o dinheiro possa tudo, mas o grande magnetismo, com que se obtém muito dinheiro, pode, efetivamente, quase tudo.
Quando depunha o jornal sobre a mesa do café, já refletia que o mesmo, na sua esfera, poderia dizer o caixeiro de praça, mais ou menos meu conhecido, que todos os dias almoça, como hoje está almoçando, na mesa ao fundo do canto. Tudo quanto o milionário teve, este homem teve; em menor grau, e certo, mas para a sua estatura. Os dois homens conseguiram o mesmo, nem há diferença de celebridade, porque aí também a diferença de ambientes estabelece a identidade. Não há ninguém no mundo que não conhecesse o nome do milionário americano; mas não há ninguém na praça de Lisboa que não conheça o nome do homem que está ali almoçando.
Estes homens, afinal, obtiveram tudo quanto a mão pode atingir, estendendo o braço. Variava neles o comprimento do braço; no resto eram iguais. Não consegui nunca ter inveja desta espécie de gente. Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde se não está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo, em conseguir, enfim, qualquer coisa de difícil’, de absurdo, em vencer, como obstáculos, a própria realidade do mundo.
Se me disserem que é nulo o prazer de durar depois de não existir, responderei, primeiro, que não sei se o é ou não, pois não sei a verdade sobre a sobrevivência humana; responderei, depois, que o prazer da fama futura é um prazer presente — a fama é que é futura. E é um prazer de orgulho igual a nenhum que qualquer posse material consiga dar. Pode ser, de facto, ilusório, mas seja o que for, é mais largo do que o prazer de gozar só o que está aqui. O milionário americano não pode crer que a posteridade aprecie os seus poemas, visto que não escreveu nenhuns; o caixeiro de praça não pode supor que o futuro se deleite nos seus quadros, visto que nenhuns pintou.
Eu, porém, que na vida transitória não sou nada, posso gozar a visão do futuro a ler esta página, pois efetivamente a escrevo; posso orgulhar-me, como de um filho, da fama que terei, porque, ao menos, tenho com que a ter. E quando penso isto, erguendo-me da mesa, é com uma íntima majestade que a minha estatura invisível se ergue acima de Detroit, Michigan, e de toda a praça de Lisboa.
Reparo, porém, que não foi com estas reflexões que comecei a refletir.
O que pensei logo foi no pouco que tem que ser na vida quem tem que sobreviver. Tanto faz uma reflexão como a outra, pois são a mesma. A glória não é uma medalha, mas uma moeda: de um lado tem a Figura, do outro uma indicação de valor. Para os valores maiores não há moeda: são de papel e esse valor é sempre pouco. Com estas psicologias metafísicas se consolam os humildes como eu.
146.
Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também.
147.