Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela, "Aquela rapariga parece um rapaz". Um outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela, "Aquela rapariga é um rapaz". Outro ainda, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afeto pela concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela, "Aquele rapaz". Eu direi, "Aquela rapaz", violando a mais elementar das regras da gramática, que manda que haja concordância de género, como de número, entre a voz substantiva e a adjetiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.
A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. Se quiser dizer que existo, direi "Sou". Se quiser dizer que existo como alma separada, direi "Sou eu".
Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei de empregar o verbo "ser" senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi "Sou-me". Terei dito uma filosofia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer nada em quarenta frases? Que mais se pode exigir da filosofia e da dicção?
Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões. Conta-se de Sigismundo, Rei de Roma, que tendo, num discurso público, cometido um erro de gramática, respondeu a quem dele lhe falou, "Sou Rei de Roma, e acima da gramática". E a história narra que ficou sendo conhecido nela como Sigismundo "super-grammaticam". Maravilhoso símbolo! Cada homem que sabe dizer o que diz é, no seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e a alma é ser-se.
85.
Reparando, às vezes, no trabalho literário abundante ou, pelo menos, feito de coisas extensas e completas de tantas criaturas que ou conheço ou de quem sei, sinto em mim uma inveja incerta, uma admiração desprezante, um misto incoerente de sentimentos mistos.
Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou seja má — e, se nunca é inteiramente boa, muitas vezes não é inteiramente má -, sim, fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. E como um filho: é imperfeita como todo o ente humano, mas é nossa como os filhos são.
E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas, eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também. Mais valera, pois, ou a obra completa, ainda que má, que em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se reconhece incapaz de agir.
86.
Penso se tudo na vida não será a degeneração de tudo’. O ser não será uma aproximação — uma véspera, ou uns arredores.
Assim como o Cristianismo não foi senão a degeneração bastarda do neoplatonismo abaixado, a judaização do helenismo pelo romano, assim nossa época, senil e cancerígena, é o desvio múltiplo de todos os grandes propósitos, confluentes ou opostos, de cuja falência surgiu a era com que faliram .
Vivemos um entreato com orquestra.
Mas que tenho eu, neste quarto andar, com todas estas sociologias? Tudo isto é-me sonho, como as princesas da Babilónia, e o ocuparmo-nos da humanidade é fútil, fútil — uma arqueologia do presente.
Sumir-me-ei entre a névoa, como um estrangeiro a tudo, ilha humana desprendida do sonho do mar e navio com ser supérfluo à tona de tudo.
87.
A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente. Se conhecêssemos a verdade, vê-la-íamos; tudo o mais é sistema e arredores. Basta-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo; querer compreendê-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende.
Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem que o aceite, mas que o não abra. Trazem-me a ciência, como uma faca num prato, com que abrirei as folhas de um livro de páginas brancas. Trazem-me a dúvida, como pó dentro de uma caixa; mas para que me trazem a caixa se ela não tem senão pó?
Na falta de saber, escrevo; e uso os grandes termos da Verdade alheios conforme as exigências da emoção. Se a emoção é clara e fatal, falo, naturalmente, dos deuses e assim a enquadro numa consciência do mundo múltiplo. Se a emoção é profunda, falo, naturalmente, de Deus, e assim a engasto numa consciência una. Se a emoção é um pensamento, falo, naturalmente, do Destino, e assim a encosto à parede.