O meu estado de espírito atual é de uma depressão profunda e calma. Estou há dias ao nível do Livro do Desassossego. E alguma coisa dessa obra tenho escrito. Ainda hoje escrevi quase um capítulo todo.
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A Armando Cortes-Rodrigues, em 19 de Novembro de 1914:
O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos.
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A João Gaspar Simões, em 28 de Julho de 1932:
Primitivamente, era minha intenção começar as minhas publicações por três livros, na ordem seguinte: Portugal, que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português Contemporânea é a segunda parte; Livro do Desassossego (Bernardo Soares, mas subsidiariamente, pois que o B.S. não é um heterónimo, mas uma personalidade literária); Poemas Completos de Alberto Caeiro (com o prefácio de Ricardo Reis, e, em posfácio, as Notas para a Recordação do Álvaro de Campos). Mais tarde, no outro ano, seguiria, só ou com qualquer livro, Cancioneiro (ou outro título igualmente inexpressivo), onde reuniria (em Livros 1 a III ou 1 a V) vários dos muitos poemas soltos que tenho, e que são por natureza inclassificáveis salvo de essa maneira inexpressiva.
Sucede, porém, que o Livro do Desassossego tem muita coisa que equilibrar e rever, não podendo eu calcular, decentemente, que me leve menos de um ano a fazê-lo. E, quanto ao Caeiro, estou indeciso. ...
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A Adolfo Casais Monteiro, em 13 de Janeiro de 1935:
Como escrevo em nome destes três? Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer "eu próprio" em vez de "eu mesmo", etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. ...)
II
Duas notas
Nota para as edições próprias (e aproveitável para o "Prefácio")
Reunir, mais tarde, num livro separado, os poemas vários que havia errada tenção de incluir no Livro do Desassossego; este livro deve ter um título mais ou menos equivalente a dizer que contém lixo ou intervalo, ou qualquer palavra de igual afastamento.
Este livro poderá, aliás, formar parte de um definitivo de refugos, e ser o armazém publicado do impublicável que pode sobreviver como exemplo triste. Está um pouco no caso dos versos incompletos do lírico morto cedo, ou das cartas do grande escritor, mas aqui o que se fixa é não só inferior senão que é diferente, e nesta diferença consiste a razão de publicar-se pois não poderia consistir em a de se não dever publicar.
L. Do D. (nota)
A organização do livro deve basear-se numa escolha, rígida quanto possível, dos trechos variadamente existentes, adaptando, porém, os mais antigos, que falhem à psicologia de Bernardo Soares, tal como agora surge, a essa vera psicologia. À parte isso, há que fazer uma revisão geral do próprio estilo, sem que ele perca, na expressão íntima, o devaneio e o desconexo lógico que o caracterizam.
Há que estudar o caso de se se devem inserir trechos grandes, classificáveis sob títulos grandiosos, como a Marcha Fúnebre do Rei Luís Segundo da Baviera, ou a Sinfonia de uma Noite Inquieta. Há a hipótese de deixar como está o trecho da Marcha Fúnebre, e há a hipótese de a transferir para outro livro, em que ficassem os Grandes Trechos juntos.
C. Do Prefácio às Ficções do Interlúdio
Umas figuras insiro em contos, ou em subtítulos de livros, e assino com o meu nome o que elas dizem; outras projeto em absoluto e não assino senão com o dizer que as fiz. Os tipos de figuras distinguem-se do seguinte modo: mas que destaco em absoluto, o mesmo estilo me é alheio, e, se a figura o pede, contrário, até, ao meu; nas figuras que subscrevo não há diferença do meu estilo próprio, senão nos pormenores inevitáveis, sem os quais elas se não distinguiriam entre si.