Porque não acrediteis que eu escrevo para publicar, nem para escrever nem para fazer arte, mesmo. Escrevo, porque esse é o fim, o requinte supremo, o requinte temperamentalmente ilógico, da minha cultura de estados de alma. Se pego numa sensação minha e a desfio até poder com ela tecer-lhe a realidade interior a que eu chamo ou A Floresta do Alheamento, ou a Viagem Nunca Feita, acreditai que o faço não para que a prosa soe lúcida e trémula, ou mesmo para que eu goze com a prosa — ainda que mais isso quero, mais esse requinte final junto, como um cair belo de pano sobre os meus cenários sonhados — mas para que dê completa exterioridade ao que é interior, para que assim realize o irrealizável, conjugue o contraditório e, tornando o sonho exterior, lhe dê o seu máximo poder de puro sonho, estagnador de vida que sou, burilador de inexatidões, pajem doente da minha alma Rainha, lendo-lhe ao crepúsculo não os poemas que estão no livro, aberto sobre os meus joelhos, da minha Vida, mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio, e ela fingindo que ouve, enquanto a Tarde, lá fora não sei como ou onde, dulcifica sobre esta metáfora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz ténue e última de um misterioso dia espiritual.
Exame de consciência
Viver a vida em sonho e falso é sempre viver a vida. Abdicar é agir. Sonhar é confessar a necessidade de viver, substituindo a vida real pela vida irreal, e assim é uma compensação da inalienabilidade do querer viver.
Que é tudo isto enfim senão a busca da felicidade? E busca qualquer outra coisa?
O devaneio contínuo, a análise ininterrupta deram-me alguma coisa essencialmente diferente do que a vida me daria?
Com separar-me dos homens não me encontrei, nem este livro é um só estado de alma, analisado de todos os lados, percorrido em todas as direções.
Alguma coisa nova, ao menos, esta atitude me trouxe? Nem essa consolação se aproxima de mim. Estava tudo já em Heraclito e no Eclesiastes: A vida é um brinquedo de criança na areia... Vaidade e de espírito... E em Job pobre, numa só frase: A minha alma está cansada da minha vida.
Escuto-me sonhar. Embalo-me com o som das minhas imagens... Soletra-se-me em recônditas melodias o som de uma frase imageada vale tantos gestos! Uma metáfora consola de tantas coisas!
Escuto-me... São cerimoniais em mim... Cortejos... Lantejoulas no meu tédio... Bailes de máscaras... Assisto à minha alma com deslumbramento...
Caleidoscópio de fragmentadas sequências, de Pompa das sensações demasiado vívidas... Leitos régios em castelos desertos, joias de princesas mortas, por seteiras de castelos enseadas avistadas; virão sem dúvida as honras e poderio, para os mais felizes, haverá cortejos nos exílios... Orquestras adormecidas, fios de bordando sedas...
Em Pascal:
Em Vigny: Em ti
Em Amiel, tão completamente em Amiel:
(certas frases)...
Em Verlaine, nos simbolistas:
Tanto doente em mim... Nem o privilégio de uma pequena originalidade de doença... Faço o que tantos antes de mim fizeram... Sofro o que já é forma velha sofrer... Para que mesmo penso estas coisas, se já tantos as pensaram e as sofreram?...
E contudo, sim, qualquer coisa de novo trouxe. Mas disso não sou responsável. Veio da Noite e brilha em mim como uma estrela... Todo o meu esforço não o produziu nem o apagou... Sou uma ponte entre dois mistérios, sem saber como me construíram...
Lagoa da Posse
A posse é para o meu pensar’ uma lagoa absurda — muito grande, muito escura, muito pouco profunda. Parece funda a água porque é falsa de suja.
A morte? Mas a morte está dentro da vida. Morro totalmente? Não sei da vida. Sobrevivo-me? Continuo a viver.
O sonho? Mas o sonho está dentro da vida. Vivemos o sonho? Vivemos. Sonhamo-lo apenas? Morremos. E a morte está dentro da vida.
Como a nossa sombra a vida persegue-nos. -E só não há sombra quando tudo é sombra. A vida só nos não persegue quando nos entregamos a ela.
O que há de mais doloroso no sonho é não existir. Realmente, não se pode sonhar.
O que é possuir? Nós não o sabemos. Como querer então poder possuir qualquer coisa? Direis que não sabemos o que é a vida, e vivemos... Mas nós vivemos realmente? Viver sem saber o que é a vida será viver?
***
Nada se penetra, nem átomos, nem almas. Por isso nada possui nada. Desde a verdade até a um lenço tudo é ímpossuível. A propriedade não é um roubo: não é nada.
Lenda Imperial