Читаем Livro do Desassossego полностью

De resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante ação, nunca desaparecem o do contacto com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.

Matar o sonho é matarmo-nos. E mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.

O Universo, a Vida — seja isso real ou ilusão — é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo — ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e possuindo e isso é

Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola aos meus olhos e ouvidos.

327.

Na grande claridade do dia o sossego dos sons é de ouro também. Há suavidade no que acontece. Se me dissessem que havia guerra, eu diria que não havia guerra. Num dia assim nada pode haver que pese sobre não haver senão suavidade.

328.

Junta as mãos, põe-nas entre as minhas e escuta-me, ó meu amor.

Eu quero, falando numa voz suave e embaladora, como a de um confessor que aconselha, dizer-te o quanto a ânsia de atingir fica aquém do que atingimos.

Quero rezar contigo, a minha voz com a tua atenção, a litania da desesperança .

Não há obra de artista que não pudera ter sido mais perfeita. Lido verso por verso, o maior poema poucos  versos tem que não pudessem ser melhores, poucos  episódios que não pudessem ser mais intensos, e nunca o seu conjunto é tão perfeito que o não pudesse ser muitíssimo  mais.

Ai do artista que repara para isto! Que um dia pensa nisto! Nunca mais o seu trabalho é alegria, nem o seu sono sossego. É moço sem mocidade e envelhece descontente.

E para quê exprimir? O pouco que se diz melhor fora ficar não dito.

Se eu bem pudesse compenetrar-me realmente de quanto a renúncia é bela, que dolorosamente feliz para sempre que eu seria!

Porque tu não amas o que eu digo com os ouvidos com que eu me ouço dizê-lo. Eu próprio se me ouço falar alto, os ouvidos com que me ouço falar alto não me escutam do mesmo modo que o ouvido íntimo com que me ouço pensar palavras. Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que perguntar, tantas vezes, a mim próprio o que quis dizer, os outros quanto me não entenderão!

De quão complexas ininteligências não é feita a compreensão dos outros de nós.

A delícia de se ver compreendido, não a pode ter quem se quer não compreendido, porque só aos complexos e incompreendidos isso acontece; e os outros, os simples, aqueles que os outros podem compreender — esses nunca têm o desejo de serem compreendidos.

329.

Pensaste já, ó Outra, quão invisíveis somos uns para os outros? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta apenas uma voz que está dentro de si.

As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso entender. Com que confiança cremos no nosso sentido das palavras dos outros. Sabem-nos a morte, volúpias que outros põem em palavras. Lemos volúpia e vida no que outros deixam cair dos lábios sem intenção de dar sentido profundo.

A voz dos regatos que interpretas, pura explicadora, a voz das árvores onde pomos sentido no seu murmúrio — ah, meu amor ignoto, quanto tudo isso é nós e fantasias tudo de cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!

330.

Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu amor, nos cure do prazer quase-espasmo de mentir.

Requinte último! Perversão máxima! A mentira absurda tem todo o encanto do perverso com o último e maior encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente — quem excederá, ó o requinte máximo disto? A perversão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor, inútil e absurda como um brinquedo mal feito com que um adulto quisesse divertir-se!

Não conheces, ó Deliciosa, o prazer de comprar coisas que não são precisas? Sabes o sabor aos caminhos que, se os tomássemos esquecidos’, era por erro que os tomaríamos? Que acto humano tem uma cor tão bela como os actos espúrios — que mentem à sua própria natureza e desmentem o que lhes é a intenção?

A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória!

Ah, meu amor, a glória das obras que se perderam e nunca se acharão, dos tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram partidas.

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