A literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.
Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom num a memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, no seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos.
O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.
28.
Um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar.
29.
Depois que os últimos pingos da chuva começaram a tardar na queda dos telhados, e pelo centro pedrado da rua o azul do céu começou a espelhar-se lentamente, o som dos veículos tomou outro canto, mais alto e alegre, e ouviu-se o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol. Então, pela rua estreita do fundo da esquina próxima, rompeu o convite alto do primeiro cauteleiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja da esquina reverberaram pelo espaço claro.
Era um feriado incerto, legal e que se não mantinha. Havia sossego e trabalho conjuntos, e eu não tinha que fazer. Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir. Passeava de um lado ao outro do quarto e sonhava alto coisas sem nexo nem possibilidade — gestos que me esquecera de fazer, ambições impossíveis realizadas sem rumo, conversas firmes e contínuas que, se fossem, teriam sido. E neste devaneio sem grandeza nem calma, neste atardar sem esperança nem fim, gastavam meus passos a manhã livre e as minhas palavras altas, ditas baixo, soavam múltiplas no claustro do meu simples isolamento.
A minha figura humana, se a considerava com uma atenção externa, era do ridículo que tudo quanto é humano assume sempre que é íntimo. Vestira, sobre os trajes simples do sono abandonado, um sobretudo velho, que me serve para estas vigílias matutinas. Os meus chinelos velhos estavam rotos, principalmente o do pé esquerdo. E, com as mãos nos bolsos do casaco póstumo, eu fazia a avenida do meu quarto curto em passos largos e decididos, cumprindo com o devaneio inútil um sonho igual aos de toda a gente.
Ainda, pela frescura aberta da minha janela única, se ouviam cair dos telhados os pingos grossos da acumulação da chuva ida. Ainda, vagos, havia frescores de haver chovido. O céu, porém, era de um azul conquistador, e as nuvens que restavam da chuva derrotada ou cansada cediam, retirando para sobre os lados do Castelo, os caminhos legítimos do céu todo.
Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.
30.
Reconheço, não sei se com tristeza, a secura humana do meu coração. Vale mais para mim um adjetivo que um choro real da alma. O meu mestre Vieira.
Mas às vezes sou diferente, e tenho lágrimas, lágrimas das quentes dos que não têm nem tiveram mãe; e os meus olhos que ardem dessas lágrimas mortas ardem dentro do meu coração.
Não me lembro da minha mãe. Ela morreu tinha eu um ano. Tudo o que há de disperso e duro na minha sensibilidade vem da ausência desse calor e da saudade inútil dos beijos de que me não lembro. Sou postiço. Acordei sempre contra seios outros, acalentado por desvio.
Ah, é a saudade do outro que eu poderia ter sido que me dispersa e sobressalta! Quem outro seria eu se me tivessem dado carinho do que vem desde o ventre até aos beijos na cara pequena?